Publicado em 29/07/2015 Autor Lucas Nicolau de Oliveira Revisor Elvys dos Santos Pereira
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A anemia ferropriva é um anemia microcítica e hipocrômica resultante do desequilíbrio no balanço total de ferro no organismo, ou seja, uma alteração na relação da quantidade de ferro necessária para manter a eritropoese em níveis normais e a quantidade de ferro disponível para que de fato ela ocorra.
Etiologia
O fator desencadeante para este tipo de anemia é a depuração do ferro necessário ao organismo para que ele funcione. A biodisponibilidade do ferro no organismo pode estar deficiente por alguns motivos.
Para um adulto, criança e mulher pós-menopausa a absorção diária de ferro de aproximadamente 1 mg já é o suficiente para repor o ferro perdido. Porém, mulheres que menstruam, que estão grávidas ou entre 12 a 15 anos necessitam de aproximadamente 3 mg de ferro por dia para repor a quantidade excretada inespecificamente. Por esta razão, mulheres geralmente precisam de uma ingestão maior de ferro. O crescimento rápido durante a infância também aumenta as necessidades energéticas do indivíduo, o que pode aumentar a demanda de ferro, exigindo maiores quantidades do mineral.
A biodisponibilidade do ferro para que possa ser absorvido também tem sua relevância no estudo da anemia ferropriva. O ferro não-heme (ou inorgânico) de origem vegetal tem sua absorção influenciada por outras substâncias presentes na dieta, já que somente é absorvido na forma ferrosa. Deste modo, substâncias que promovem redução como ácido ascórbico, ácido cítrico, aminoácidos e açúcares estimulam a absorção. Enquanto isto, substâncias que promovem oxidação como tanatos, carbonatos, oxalatos e fosfatos inibem a absorção. Qualquer mecanismo que altere a produção de ácido clorídrico(HCl) no estômago também pode interferir na absorção, já que o HCl também estimula a transição do ferro férrico para ferroso. Por causa destas variáveis o ferro heme é absorvido muito mais facilmente que o ferro não-heme. Uma observação clínica é que a alimentação puramente vegetariana aumenta a probabilidade de contrair anemia ferropriva se não for corretamente diversificada (ver no fim: profilaxias).
Sangramento excessivo e hemorragias ocasionam a perda de muito sangue e é nele que se encontra cerca de 65% de todo o ferro corpóreo. Sangramentos no trato gastrointestinal (GI) podem provocar perdas significativas de ferro, causando ainda anemia ferropriva. A perda de sangue pelo trato GI pode estar relacionada a lesões benignas, neoplásicas ou ainda a agentes irritativos da mucosa como álcool e antiinflamatórios. Helmintos também podem gerar sangramentos e perda de ferro como a ancilostomíase e a esquistossomose. Muitas vezes, estes sangramentos podem ser “ocultos”, ocorrendo sem que a pessoa se dê conta e levando à perda crônica de ferro.
Fisiopatologia
A perda de ferro é dividida em três estágios:
Primeiro Estágio
O balanço geral do ferro no organismo, definido como absorção menos excreção, diminui. Porém, apesar desta diminuição não há grandes efeitos sistêmicos por causa das reservas de ferro compostos pela ferritina e a hemossiderina. Estas proteínas de reservatório de ferro mantêm a saturação de transferrina e, consequentemente, os níveis de hemoglobina praticamente estáveis, pois liberam seus átomos de ferro para o interstício e a corrente sanguínea onde são capturados pela transferrina e levados até os tecidos alvos para poderem ser utilizados. Enquanto as reservas de ferro permanecerem funcionais, não há nenhuma alteração fisiopatológica nem alteração da velocidade de produção eritrocitária no organismo.
Segundo Estágio
Com uma perda mais acentuada do ferro, as reservas se esgotam e a saturação da transferrina sérica começa a diminuir progressivamente enquanto a capacidade total de ligação ao ferro (TIBC) aumenta. Porém, ainda não há produção de anemia, pois, mesmo com uma saturação menor, as transferrinas plasmáticas conseguem suprir adequadamente os tecidos para que ocorra a eritropoiese.
Terceiro Estágio
Ocorre quando a saturação da transferrina cai para valores abaixo de 20% (normal de 30% a 50%) e a síntese de hemoglobina é afetada. Gradualmente a hemoglobina e o hematrócrito começam a diminuir e por fim assumem uma conformação hipocrômica e microcítica, caracterizando anemia ferropriva. É importante ressaltar que a queda da saturação da transferrina para valore abaixo de 30% já pode gerar hipocromia e microcitose, porém, sintomatologia clássica geralmente é alcançada com valores de saturação inferiores a 20%.
A hemoglobina é a molécula transportadora de oxigênio mais importante do organismo, ela está dentro dos eritrócitos maduros e possui um grupamento heme constituído de um anel porfirínico e um átomo de ferro. Os precursores eritrócitos (eritroblastos) apresentam grande quantidade de receptores de transferrina (TfR) na sua superfície celular para que possam capturar o ferro e sintetizar hemoglobina. Sem ferro, não é possível a produção da hemoglobina e o transporte de oxigênio aos tecidos fica comprometido. Na medula óssea, quando a biodisponibilidade do ferro é diminuída (baixa saturação das resesrvas e de transferrina) a atividade eritropoiese, como a síntese de enzimas responsáveis pela maturação, aumenta na tentativa de se manter níveis mais altos de eritrócitos. Apesar de não ser conhecido um mecanismo de feedback negativo para a sintese de hepcidina, com baixa quantidade de ferro e baixa saturação de transferrina, a proteína hemocromatose humana (HFE) irá se ligar preferencialmente ao receptor de transferrina tipo 1 (TfR-1, ou apenas TfR) e portanto o estímulo para a sintese e liberação da hepcidina não ocorrerá. Este fator faz com que macrófagos da medula óssea passem a liberar quase que totalmente sua reserva de ferro para o interstício a fim de ser utilizado na eritropoiese.
Para que se inicie o quadro anêmico, a diminuição do ferro tem que ser significativa a ponto de que os mecanismos que controlam a homeostase do ferro se mostrem ineficientes. Neste caso, tanto os mecanismos intracelulares relacionados com as proteínas reguladoras do ferro (IRP’s) e os elementos responsíveis ao ferro (IRE) quanto extracelulares como a própria hepcidina não são capazes de promoverem com eficiência a manutenção dos níveis de ferro. Por isso, os depósitos de ferro do organismo ficam completamente depletados e a eritropoiese deficiente. O resultado geral, portanto, será uma diminuição dos níveis de ferro sérico, ferritina e saturação da transferrina. Com a biodisponibilidade de ferro deficiente, os eritroblastos não conseguem produzir as quantidades normais de hemoglobina e o eritrócito "maduro" fica com uma coloração pálida (hipocrômico) por causa da baixa concentração da proteína em seu interior e de tamanho reduzido (microcítico) ocasionado pela diminuição do volume proteico no interior da hemácia.
Semiologia
A anemia ferropriva de grau leve pode ser assintomática pois a microcitose e a hipocromia só é encontrada quando o hematócrito cai por cerca de 30%, porém, quando há sintomatologia, ela pode ser inespecífica ou específica. Inespecíficos são aqueles que denunciam também outros tipos de anemia e específicos são aqueles que denunciam exclusivamente a anemia ferropriva.
Como o ferro está em interação com vários outros componentes, a sua deficiência também atrapalha enzimas e proteínas ferro-dependentes em todo o organismo, gerando alterações específicas como:
Coiloníquia
Depressão na região central da lâmina ungueal e elevação das bordas
Alopécia
Perda de pelos e cabelo
Má absorção intestinal de vários metabólitos
Glossite Atrófica
Atrofia das papilas filiformes da língua, conhecida como “língua careca”
Estomatite(Queilite) Angular
Inflamação na comissura da boca
Os achados físicos mais relacionados à doença são a glossite atrófica e a queilite angular. No sistema nervoso central a carência de ferro pode desencadear o transtorno pica, em que indivíduos passam a sentir apetite por substânias não alimentares como argila, gelo, terra ou até por ingredientes alimentares como farinha e amido.
Diagnóstico
O diagnóstico de anemia ferropriva depende de exames laboratoriais. O exame mais indicado é o hemograma para avaliar as variáveis sanguíneas e um exame complementar para o diagnóstico diferencial. Os achados comuns do exame de um indivíduo com anemia ferropriva são:
A protoporfirina eritrocitária é um intermediário na síntese da hemoglobina. Quando o ferro não está disponível em quantidades suficientes, nem toda protoporfirina é convertida para hemoglobina e então os níveis de protoporfirina eritrocitária aumentam.
Diagnóstico Diferencial
A microcitose e a hipocromia são parâmetros indispensáveis no diagnóstico e são visíveis através de um esfregaço de sangue periférico relatados pelo hemograma. Os níveis de transferrina plasmática não são indicadores para o diagnóstico diferencial de anemia ferropriva pois também podem estar aumentados em anemia de doença crônica. Os indicadores para o diagnóstico diferencial de anemia ferropriva são: a capacidade total de ligação ao ferro (TIBC), a porcentagem de saturação da transferrina, a ferritina sérica e o receptor solúvel de transferrina (sTfR).
A ferritina sérica estará baixa
Em baixas saturações das reservas de ferro nos hepatócitos, a produção de ferritina sérica pelo fígado é inibida. Esta ação é importante para que o ferro fique livre no plasma, podendo ser utilizado pelas células e também para poupar uma produção proteica desnecessária. Como os níveis séricos de ferritina estão diretamente relacionados com as reservas de ferro do organismo, ela é considerada a substância de maior valor diagnóstico na análise laboratorial (padrão ouro). Porém, a ferritina também é uma proteína de fase aguda, em infecções ou inflamações ela pode estar induzida e nestes casos ela tem baixo ou nenhum valor diagnóstico, devendo ser analisados outros parâmetros.
A TIBC deve estar alta
A maioria da transferrina presente na amostra de sangue coletada no exame não está ligada ao ferro e portanto sua saturação estará baixa. Logo, todo ferro que for disponibilizado para esta amostra terá muita afinidade e grande capacidade de se associar às proteinas carreadoras. Ou seja, a capacidade total de ligação do ferro estará elevada. Este é um dos exames mais pedidos em razão do baixo custo comparado aos outros.
O sTfR vai estar alto
O sTfR é o produto da clivagem do receptor de transferrina (TfR) das células. Ele pode ser liberado quando uma célula captura o ferro da transferina para seu interior. Quando se aumenta a quantidade de TfR ocorre também ocorre elevação da concentração plasmática do sTfR. Na anemia ferropriva, a baixa concentração de ferro leva a indução da síntese do TfR pelo complexo IRP-IRE (proteínas reguladoras do ferro - elementos responsíveis ao ferro) que fazem parte do mecanismo intracelular de controle do ferro o que leva também a um aumento da quantidade de sTfR sérico. Não tem tanto valor diagnóstico quanto os outros exames, pois apenas uma fração dos TfR são clivados a sTfR, podendo ser diferente para cada pessoa.
Tratamento
No caso de confirmação laboratorial, a suplementação de ferro é indicada, porém, uma causa subjacente deve ser investigada pois a anemia pode ser causada por alguma hemorragia ou lesão “oculta” potencialmente fatal. A administração do suplemento de ferro pode ser feito por via oral ou parenteral.
Via Oral
O ferro oral é administrado na forma de sal como por exemplo, o sulfato ferroso. O tratamento tem melhores efeitos quendo o sulfato ferroso é administrado na ausência de alimentos já que estes podem modificar o estado do ferro ferroso para férrico impedindo assim sua absorção. Em pessoas com intolerância ao sulfato ferroso ou que os efeitos colaterais são muito fortes (náusea e desconforto epigástrico) é vantajosa a substituição do sulfato ferroso para outras substâncias como o gluconato ferroso ou o fumarato ferroso. Apesar destas últimas terem uma absorção mais lenta, provocam menos efeitos colaterais por irritarem menos a mucosa gástrica. Apesar das possíveis complicações, o sulfato ferroso tem baixo custo e baixa toxicidade o que permite sua administração experimental como um modo alternativo de confirmar o diagnóstico de anemia ferropriva caso os exames laboratoriais e a sintomatologia clínica não se relacionem.
Se mesmo com a administração precisa o medicamento não produzir efeitos significativos, deve-se analisar se a absorção de ferro no enterócito está sendo efetivo. Para isso, pode-se fazer um teste de tolerância ao ferro. Neste teste, o paciente ingere dois comprimidos de ferro com o estômago vazio e o ferro sérico é medido serialmente durante as próximas 2 horas.
Via Parenteral
A administração parenteral pode ser feita pela via intramuscular ou intravenosa com a utilização de gluconato férrico de sódio. Por causa das dificuldades enfrentadas nesta via de administração ela só é indicada em alguns casos.
A desvantagem deste tipo de administração é a limitação da dose sendo necessárias várias administrações para que se restabeleça as reservas de ferro do organismo.
Quando é feita a suplementação de ferro, sua presença nos reticulócitos aumenta dentro de 4 a 5 dias, e a hemoglobina começa a aumentar de concentração em uma semana e somente após 6 semanas recupera sua concentração plasmática. Apesar destes efeitos serem relativamente rápidos, o tratamento da anemia ferropriva não tem como objetivo apenas corrigir a anemia e sim restaurar pelo menos em parte as reservas de ferro presentes no organismo na forma de ferritina e hemosiderina. Por este motivo é necessário manter o tratamento por 6 a 12 meses mesmo após a correção da anemia.
Transfusão de Hemácias
Em pacientes idosos e sintomáticos que apresentam anemia ferropriva grave e instabilidade cardiovascular é aconselhável a transfusão de hemácias. Este tratamento ajuda em crises agudas e aumenta levemente a concentração de ferro no corpo já que os eritrócitos podem ser reciclados pelo sistema reticuloendotelial.
Epidemiologia
Vários estudos epidemiológicos realizados em todo o Brasil revelam a importância da atenção médica para esta doença. Políticas públicas são necessárias, já que a significância da anemia ferropriva na maioria das pesquisas se apresenta de grau grave a moderada. Não somente a incidência, mas também a prevalência da anemia ferropriva é elevada, podendo chegar em até 80% em locais mais isolados com pouco acesso a informação e apoio médico.
Profilaxia
A suplementação de ferro na gestação geralmente é recomendada mesmo na ausência de anemia e principalmente para pessoas de baixas condições financeiras. Apesar de existir uma suplementação profilática, a melhor profilaxia da anemia ferropriva é sempre manter uma alimentação balanceada. Quando se faz parte de algum dos grupos de risco, deve-se estar atento para aumentar o consumo diário de ferro a fim de prevenir possíveis adoecimentos.
Na hora de comprar um alimento industrial é muito eficiente a análise do rótulo contendo as informações nutricionais do alimento. Um alimento rico em ferro é todo aquele que possui acima de 5 mg de ferro em uma porção de 100g, ou acima de 1,5 mg em uma porção de 30g. Também é interessante a comparação entre produtos de indústrias diferentes pois podem haver alterações significativas nas informações nutricionais.
Auxílio na Absorção
É importante lembrar que a ingestão conjunta de Vitamina C (Ácido Ascórbico) aumenta a taxa de absorção de ferro. Ela é encontrada em grande parte das frutas como laranja, limão, manga, abacaxi, goiaba, entre outras, e pode ser consumida como suco junto com o alimento.
Hoffbrand, A.V.; Moss, P.A.H.. Fundamentos em Hematologia. 6ed. Elsevier, 2013.
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Comentários
Leonardo
exelente!!! parabéns pelo trabalho.
Leonardo
Lorena
Lorena
Muito bom seu blog, apenas deixo uma observação. Em relação aos alimentos industrializados ricos/fonte de ferro, o cálculo baseado na ingestão adequada para um adulto saudável considera que alimento rico em ferro é todo aquele que possui a partir de 4,2 mg de ferro em uma porção de 100g, ou a partir de 1,2 mg em uma porção de 30g.
Lorena
**corrigindo: de 4,5 mg de ferro em uma porção de 100g, ou a partir de 1,3 mg em uma porção de 30g =D
Lorena
Juliana
Juliana
Blog espetacular!! Adoraria ver mais postagens suas, são bastante completas e fundamentadas em fontes adequadas e seguras.
exelente!!! parabéns pelo trabalho.
Muito bom seu blog, apenas deixo uma observação. Em relação aos alimentos industrializados ricos/fonte de ferro, o cálculo baseado na ingestão adequada para um adulto saudável considera que alimento rico em ferro é todo aquele que possui a partir de 4,2 mg de ferro em uma porção de 100g, ou a partir de 1,2 mg em uma porção de 30g.
**corrigindo: de 4,5 mg de ferro em uma porção de 100g, ou a partir de 1,3 mg em uma porção de 30g =D
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